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Sobre os dias que fui Crioula

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Esses momentos em que a pergunta já não cabe, tampouco a resposta. De repente me vi preenchida, como se ali se desse ao certo que havia me encaixado no mundo. Assim, crioula. No tambor de Crioula.

Na praça dos três poderes um quarto poder se ergue em contraponto e resistência. O Centro Cultural do Mestre Amaral cava e finca seu espaço no alto de São Luis, sem pedir licença. Nesta terra, o que não falta é espaço, e o mestre resolveu ocupar! E, sem falta, todas as quartas e sextas-feiras aquece seus tambores para ressoarem madrugada a dentro fazendo vibrar os corpos e espíritos em promessa a São Benedito, neste espaço que é do povo.

A celebração, que é misto de festa e devoção tem seu início muito antes da chegada dos brincantes. Logo cedo os amigos da casa buscam as madeiras velhas que renovam o som dos tambores ao longo da madrugada, o mestre Amaral varre a casa e o terreiro recolhendo as folhas da enorme seringueira que compartilha e embeleza o espaço do Centro Cultural. A preparação não cessa, seguem desde a arrumação da fogueira à toda a limpeza do interior da casa e também do terreiro, feita cuidadosamente por Susana (esposa e parceira do Mestre Amaral). A fogueira ilumina e aquece o meião, o crivador e o tambor grande. Os meninos vão se banhar e a água do rio Bacanga se prepara pra subir.

A roda e a noite é inaugurada pelo santo da casa. Um cortejo de mulheres, de coreiras, de crioulas de saia longa e lenço na cabeça seguem guiadas por São Benedito, o Santo Negro, e é pra ele que se devota o melhor.

A voz já rouca de tanto cantar irrompe pela noite em-toadas, convidando os tambores a dançar. A roda de coreiras é terreno de disputa, é lugar de festa, é espaço de respeito, tem tradição, tem novidade, tem boniteza a não caber e tem uma luz que não se vê.

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Meus olhos não conseguiam parar de absorver tudo o que acontecia. Eu queria me embebedar em cada pedaço desta celebração. Mal chegada já me sentia parte nunca separada daquele lugar. Como um pai distante, um ente da família, me acheguei e fui recebida.

Eu queria aprender, mas o Mestre... o mestre não ensina, ele dá uma luz. Felipe bem logo me avisou: o mais importante do tambor é pungar. Tem que aprender a pungar... Felipe é menor que o tambor grande e isso não faz diferença nenhuma, sua mão pequena ressoa no couro da festa.

A cada novo dia a roda se repetia sem nunca ser igual. E no último dia dancei, me permiti não cansar, resistir como a cada Tambor do Mestre. Punguei. Vi o tambor virar dia e ser iluminado por aquilo que não se vê...

A alvorada toca de leve a luz do fogo e pede licença pra entrar. Os tambores agora seguem em cortejo até o altar, onde nos olha São Benedito, ele olha pela casa, pelo Mestre Amaral, por sua família, por todos nós, pela nossa irmã do atlântico... Somos todos tomados pelo cansaço e pela necessidade de renascer. Os coreiros não param, tampouco as coreiras, todos no extremo do dia, no limite da noite, a toada, o tambor, os giros, o suor, o calor, os pés que já não tocam o chão, os olhos que já não focam mais, a busca, o desejo de chegar, a obrigação de permanecer, nada mais tem fim, tudo é só o começo

e a pausa.

E foi ali que eu vi a Luz.

Ps: Sobre o tambor de crioula consulte: Tambores da Ilha

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